"Prefiro não"

Tenho estudado a esquizoanálise, proposta por Deleuze e Guattari, há alguns anos. Meu estudo tem sido assistemático, leio trechos de obras dos dois autores, transcrições de filósofos que estudaram e praticaram a esquizoanálise, como Cláudio Ulpiano e Luiz Fuganti, além de fazer estudos a partir das palestras de Krishnamurti, livros Taoistas e do Zen.
Hoje, vou escrever um pouco sobre um exercício de observação que tenho feito de maneira recorrente mas sempre recaindo em equívocos. Aquele que a esquizonálise entendida por Luiz Fuganti nomeia de "prefiro não".
Até então, a minha compreensão do "prefiro não" vinha de uma percepção intencional, calcada numa formalização mental que decide "não pensar", "não sentir", "não fazer", "não agir deste modo". Mas esta postura sempre me fazia recair, pois estava sempre atrelada sutilmente a um julgamento que se exerce como separação entre aquele que observa e o observado: "vou prestar atenção nos meus pensamentos", "já estou pensando isso novamente", "isso significa...", etc. Assim, o ato de "preferir não" fazer, dizer, sentir ou pensar algo vinha sempre de umas instância julgadora que definiria aquilo que é necessário ou não, que é coerente ou não, que é moral ou não.
Hoje, a partir da minha observação, percebo que o "prefiro não" é uma atenção mais do que uma escolha, é permanecer num estado de atenção, de observação silenciosa de si, cujo "preferir não" é silencioso, é um ato de percepção, de estabelecer uma postura neutra de observação daquilo que vem como "ação", "comportamento corporal", "cadeias de pensamentos", "cadeias de imagens", "cadeias de sentimentos"... ao permanecer nessa posição o "não" aos condicionamentos é dito pela própria postura e não como ato formalizado a partir de uma instância ou modelo mental que julga o que deve ou não ser dito, feito, sentido ou pensado.
O "prefiro não" é a limpeza da superfície, que acontece quando ignoramos a "ansiedade compulsiva de que algo pode nos satisfazer" e nos abandonamos no sentido de que o próprio ato da vigília limpa a superfície ao não se permitir que nos apeguemos às marcas, às imagens, às cadeias de signos, que acionam memórias do passado e sua projeção de ideais sobre o presente, fazendo com que neguemos o acontecimento, o presente, aquilo que não para de passar.
Ao "preferir não" engajar no que a memória (histórica, social e pessoal) quer projetar sobre o presente, para interpretar, julgar e enquadrar dentro do diagrama de acontecidos, permanecemos observando toda a situação da experimentação, temos uma visão de sobrevôo enquanto estamos ao mesmo tempo no chão da experiência.
Abaixo deixo a definição de Luiz Fuganti a respeito dos tipos de niilismo, a partir de Nietzsche, que aprofunda um pouco esta postura diante da existência e daquilo que busca nos determinar, assim como a nossa relação com isto que busca nos determinar em nós e as várias etapas ou perspectivas de capturas nas quais caímos enquanto evitamos o "prefiro não".
Niilismo negativo (negar a realide e a natureza em nome de Deus/ valores Universais) - Camelo
Assim, não somos capturados pelo niilismo transcendente que crê numa força divina, fora da natureza, que é superior à nossa realidade - que busca tornar a nossa existência e o acontecimento sempre inferior, fazendo com que desvalorizemos a experiência, o campo do acontecimento - vemos a experiência como acidente, algo casual, não necessário, não relevante para gerar coerência e coesão, tudo é considerado efêmero - queremos preservar o nosso modo de vida fraco. Nega que a existência seja suficiente e autônoma - o devir se torna reativo. Na filosofia, Sócrates e Platão inventa o transcendente na filosofia a partir da aparição do estado, interiorizam o pensamento como o estado em nós. O Niilismo negativo até hoje funciona, "Deus morreu", desde que Jesus foi crucificado, nós o matamos ao escolher os valores sociais do humano como substitutos dos valores religiosos, mas colocamos os valores transcendentes num lugar de salvação, de redenção da vida ao seu final se nos mantivermos dentro de uma moral mediada pela religião, para sermos salvos - apesar de no dia a dia escolhermos os valores determinados historicamente e socialmente como aqueles que valem para justificar nossas ações - o niilismo negativo já não é mais dominante, mas tem sua função. São camadas de valores que funcionam a depender da esfera para a qual olhamos.
Niilismo reativo (reage contra Deus/Universal e a natureza e criamos valores humanos) - Camelo
Aprendemos a racionalizar, a criar uma razão, uma moral e um estado reativo. Que não precisa mais de Deus, da teologia e da religião. Qual o sentido concreto do universal em si (Deus, valores absolutos)? É o de se tornar um universal para si (moral social/humana). Essa forma humana dá o tom da declaração dos direitos humanos - que ninguém cumpriu. São direitos de uma forma do humano abstrata, diferente daquela forma do divino monoteísta. O critério de valor humano toma o lugar do valor divino. Felicidade no lugar da salvação, progresso no lugar da eternidade, moral no lugar da religião, ciência no lugar da teologia, estado no lugar de Deus, lei no lugar do bem. Com o "prefiro não", não somos capturados pelo niilismo transcendental que crê em valores superiores que devem ser seguidos na existência. Vai dar no vazio, num humano que não acha mais a realidade: quem é o verdadeiro homem? O da espécie? O dos indivíduos?
Niilismo passivo (não é reagir contra Deus ou o Humano, é desistir de Deus e do Humano) - Camelo
No fundo só o que resta é a realidade individual, que desaparece. Nada de valor divino ou humano. Vai dar no nada. Desejar é um pêndulo entre a carência e o tédio. O nada de vontade, tomou o lugar da vontade de nada (a de Deus, que nadificava a existência, depois a vontade do humano, seguindo a vontade de nada só que com a estatura do humano). Desejar é cobiçar e se aprisionar. Vale mais a compaixão que a ação. Todo desejo é inútil pois a ação engendra mais sofrimento. O desejo (intencional) é ilusório, assim como a ação intencional. Mas a ação que diferencia a potência, jamais será ilusório - segundo Nietzsche, Deleuze, etc. Desejar de modo intensivo não é desejar de modo intencional.
Niilismo ativo (o "prefio não" acreditar em valores prontos - sejam divinos, humanos ou naturalistas) - Leão
Desejar não é cobiçar, a vontade é dadivosa. Desejar não é cobiçar, é criar, o querer liberta, é dadivoso. Desejar é doar. É preciso aprender a dizer não, quando o espírito de camelo (carregou valores divinos, humanso e naturistas) se torna leão. O camelo morre no deserto, de falta de acontecimento, porque nem no outro mundo existe realidade, nem na representação humana e nem na representação da natureza, que dá em nada. Essa crença em valores prontos (divinos, humanos ou naturais) é uma ilusão. Um não a essas três formas de rebaixar a vida, de negar a existência, de negar o sentido da terra, de desqualificar os devires, os movimentos intensos e as diferenciações da nossas potências. Esse não é um não aos "nãos" - o não do leão, o não destruidor que abre caminho para a criança.
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Isso está em todos nós, no modo de sentir, pensar, usar o corpo e se relacionar. É preciso observar.
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O "Sim da criança"
O sim da criança - a inocência, a vida sem dívida espiritual. Um novo começo, uma inocência, um sagrado dizer sim ao acaso, ao acontecimento, ao movimento, à mudança, aos encontros, ao novo, ao surpreendente, ao intensivo, à vida. "Vinde a mim todo o acaso, pois ele é inocente como as criancinhas", mas não de qualquer maneira. É preciso por o acaso de joelho, depende do modo de vida - é preciso criar um modo de vida para. Não nascemos capazes disso, nos tornamos capazes. Se dizemos sim de qualquer maneira, seremos engolidos. É preciso ousadia e prudência - para a águia voar e focar de modo melhor, é preciso ter a arte das doses, ter prudência. A criança não aposta, ela mergulha, se entrega, se afirma e retoma. O tempo é uma criança que brinca mexendo as peças do jogo para lá e para cá - o tempo é um brinquedo de criança. É um devir-criança, o devir jovem de cada idade, é se relacionar de modo novo com o inédito.
Os 3 primeiros processos se assemelham à neurose (se nos conformamos, nos acovardamos, ficamos paralisados) ou a paranóia (se não nos conformamos e seguimos buscando "a verdade" fixa), ao desembocar no "não do Leão", o paranóico aciona um aspecto esquizo, que nega qualquer tipo de negação de outros tipos de valores para afirmar valores "mais verdadeiros". Ao mesmo tempo, esta "negação das negações" precisa do "Sim da Criança" ao acontecimento, à experiência, para não cair na esquizofrenia, e se tornar criador da própria existência. O "prefiro não" precisa ser levado até o fim: é preciso levar os niilismos anteriores até o seu extremo para compreender o que eles provocam na existência e para revelar o que eles valem, para aí então a realidade que possuem na nossa vida perca realmente sua sustentação, com o "não do leão".
Em vez do drama subjetivo, humano, encontrar o trágico, a destruição alegre, que é o limite do real onde tudo se transmuta. Ao reverter os valores ao levá-los ao seu extremo, ao seu final, fazemos com que eles caiam do teto do ideal, transmutando assim tais valores a partir da criação de suas condições no acontecimento: criar valores através da existência e não julgando a existência a partir de valores prontos. Sair das cadeias de valores que se apresentam como imagens, sentimentos, ideias, para produzir as nossas imagens, sentimentos, ideias a partir dos acontecimentos da nossa vida. Criamos modos da potência se realizar no mundo, se diferenciando.
Ao compreender, na prática, durante o processo de vigília, como isso funciona em nós - sem julgar ou intencionar uma mudança, acredito que isso vai desaparecendo, o "não" vai sendo dito e a dissolvição desses valores prontos em nós vai acontecendo - para que possamos então dizer o "sim da criança", que joga com o acontecimento para criar seus valores.
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