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É hora de ocupar territórios no mundo virtual

O que as Rádios Livres e os Movimentos Sociais têm a nos ensinar?
É hora de ocupar territórios no mundo virtual
Tetsuo Kogawa e Félix Guattari.

Lá pelos idos anos da década de 1980, o filósofo e esquizoanalista Félix Guattari discutia numa entrevista com o artista japonês Tetsuo Kogawa a respeito das Rádios Livres. Num dado momento, ele nos chama a atenção para como o capitalismo vinha mudando de forma nas décadas anteriores, assumindo naquele ponto novas frentes de dominação. O filósofo francês diz então que na França, por exemplo, havia uma "verdadeira liquidação da independência do magistrado, uma colonização da televisão, do rádio e dos meios de comunicação de massa".

Sobre isso, é importante começarmos a nossa reflexão notando o contraste e as similaridades entre essas diferentes épocas e lugares, pois enquanto naquele país, daquele período histórico, o monopólio dos principais meios de comunicação de massa estava nas mãos do governo, na nossa época, aqui no Brasil, as redes sociais de alcance global estão nas mãos de alguns poucos bilionários, que assumiram publicamente o apoio a determinadas ideologias políticas racistas, LGBTfóbicas e classistas que buscam consolidar o controle sobre as pessoas que as utilizam submetendo-as a determinados valores sociais - mesmo que isto não esteja explícito.

No ano em que ocorre esta entrevista, os processos de expansão do sistema social capitalista atuavam para muito além da extração do lucro através do processo de trabalho assalariado, "o capitalismo está interessado tanto pela produção de automóveis, (...) quanto pela produção da mídia de massa, a produção de libido e o estabelecimento de um sistema geral de controle social". Ao dizer isso, Guattari estava apontando para um tipo de controle que naquele período histórico já buscava organizar o grau de liberdade e de circulação social das pessoas por meio da segregação entre gêneros, raças, faixas etárias, assim como entre quem possuia seu saber ou cultura legitimados e aqueles que não deveriam ter direito a este reconhecimento, entre tantas outras formas de silenciamento ou exclusão.

Nas últimas décadas, as redes sociais privadas se tornaram um instrumento poderoso para a implementação do controle e da segregação social. Não por acaso, o homem branco mais rico do planeta comprou um dos principais espaços de interação social do mundo virtual (o Twitter, agora X) e o transformou num ambiente explicitamente integrado à reprodução de ideologias da extrema-direita, sendo agora um dos articuladores centrais de Donald Trump no governo da maior potência econômica e militar do mundo.

Em relação a esta concentração de poder das redes sociais, basta observarmos como as mais acessadas se utilizam de elementos similares para causar os mesmos efeitos: os likes, que começaram no facebook, passaram ao instagram e ao twitter e chegaram até o whatsapp, tornaram-se a métrica tanto para segmentar usuários quanto para priorizar ou esconder determinados tipos de conteúdo, definindo aqueles que irão centralizar a atenção de uma grande quantidade de usuários, o que leva inevitavelmente à comparação e classificação de mensagens (para este usuário, quais os formatos e tipos de mensagens mais importantes de acordo com a quantidade de likes?) assim como ao incentivo à repetição de padrões de postagens que por imitação buscam alcançar métricas de sucesso (quem não quer viralizar, não é?).

Isso causa uma padronização da maneira de pensar, sentir e se relacionar no mundo virtual, produz subjetividade de maneira industrial. Outro aspecto importante é a falta de autonomia sobre aquilo que vemos: esse tipo de decisão que descrevi recai sobre o algoritmo, cuja lógica de gestão da informação é dirigida pelos valores considerados importantes pelos bilionários, e que faz uma combinação e classificação sob medida para cada gosto, desde que se adeque ao sistema de métricas estabelecido por ele próprio: passando a posicionar o usuário sempre entre aquilo que é viralizável e aquilo que por comparação está próximo do tipo de conteúdo com que geralmente gastamos tempo postando, vendo, lendo ou comentando - este tipo de conteúdo filtrado pelo algoritmo, passou a ser mais predominante nos feeds dos “usuários” que os conteúdos produzidos pelos perfis que eles optaram por “seguir”.

A coleta de dados e a falta de autonomia estão no centro deste mecanismo de tomada de decisões que se torna praticamente invisível por estar embutido no algoritmo e na arquitetura da aplicação na qual estamos imersos. Os efeitos são vários: tantas recomendações incutem um comportamento de busca insaciável por novas indicações geradas pelos algoritmos, o que ao mesmo tempo nos coloca numa posição de espera passiva diante da possibilidade de que nos sejam enviados conteúdos que nos confortam e prendem a nossa atenção - é um jogo de tiro curto que se repete à exaustão.

Neste ambiente (ou jaula?), em que há uma invisibilização da estrutura a que estamos submetidos, o grande público não tem ideia de como está sendo tratado e com que finalidade, pois não sabe o que é feito com os seus dados, o modo como o algoritmo realmente funciona ao mapear os nossos hábitos digitais, muito menos é perceptível a ideologia incutida no código criado por uma mega-empresa que busca em última instância o lucro. O grau de dependência aliado à ignorância sobre os princípios arquitetônicos que regem o ambiente digital em que estamos chegou ao ponto de nos fazer permanecer em plataformas cujos donos apoiam abertamente valores nazifascistas. Acreditamos ainda que tudo é uma questão de conteúdo e nos deixamos ser constantemente coordenados pelo algoritmo assim que entramos nestes aplicativos.

Mas isto não é de hoje. Este tipo de controle já estava presente, por exemplo, no modo como a televisão normalizou a passividade do público ao criar um lugar para o consumo familiar e passivo: por meio do isolamento dos programas em estúdios, da divisão hierárquica de funções (direção, equipe técnica e apresentação) e através da centralização do investimento na produção de programas nacionais, tendo em vista a fabricação de um telespectador médio. Esta escolha política, como nos lembra Félix Guattari, se disfarça de evolução técnica ao esconder o fato de que o uso técnico destes aparatos tecnológicos poderia ter ido por um caminho completamente diferente: em relação à televisão, através da opção pelas transmissões ao vivo, na rua, direto de lugares onde a vida coletiva estava sendo vivida, decidida ou pensada, por exemplo, ou permitindo a produção coletiva de contéudos por meio de entrevistas e participações de grupos geralmente invisibilizados, ou ainda pela descentralização e ampliação de programas de iniciativa local, comunitária, alternativa ou de grupos minoritários.

Study dispels notion that social media displaces human contact | KU News

E o que podemos fazer diante de tamanho poder?

Dito isso, com quem podemos aprender sobre a luta por autonomia no mundo virtual? Não precisamos ir longe. Aqui no Brasil, desde a colonização os movimentos de resistência dos povos originários e quilombolas nos ensinam que é preciso construir estratégias e táticas para manter um mínimo de autonomia até que sejamos capazes de dar os próximos passos. Sempre de forma gradual e equilibrada, mas pisando firme. Esta autonomia começa pela retomada e estabelecimento de um território comunitário, espaço em que poderemos cultivar outras maneiras de ser por meio dos recursos que dispomos enquanto comunidade, condições cujas características são completamente diferentes daquelas que foram produzidas pelo capital. Um outro aspecto importante é a construção em paralelo de uma rede de iniciativas autônomas que possa se apoiar mutuamente na estabilização desses territórios, trocando experiências e recursos que possibilitem a ampliação da autonomia de cada um dos componentes deste ecossistema.

Encontro da Teia dos Povos.
Encontro da Teia dos Povos.

Mas retornando ao nosso tema principal, no que diz respeito ao espaço virtual, que está aí, queiramos ou não: onde residem as possibilidades de uma retomada das mídias de massa para um uso coletivo, baseado na produção de liberdade por meio de uma autogestão ligada à construção de territórios comunitários?

Tomo um exemplo que me é mais próximo: o Fediverso em sua aproximação à filosofia do software livre. Hoje, em contraposição à produção industrial de mentalidades organizada pelo Instagram, Twitter (X), Facebook e Whatsapp, temos a oportunidade de costruir as nossas próprias redes e espaços virtuais na internet com experimentações tornadas possíveis ao longo das últimas décadas por desenvolvedores que pensam a partir de valores éticos e políticos vinculados à autonomia, cooperação e autogestão. Algo que remonta ao início da web, quando ela ainda não havia sido ocupada e centralizada pelo uso dos apps das redes sociais privadas.

Quando Guattari defende que naquele contexto social em que vivia - de monopólio estatal das rádios, de relativa facilidade de acesso a equipamentos, conhecimento técnico - a organização de rádios livres permitiu que a resistência se desse pela própria multiplicação de iniciativas, o que dificultava a perseguição do estado, ele também está nos apontando que é preciso entender a correlação de forças da nossa época para perceber qual o movimento pode ser feito sem que corramos riscos desnecessários ou tenhamos que fazer esforços que estão além do nosso alcance.

Quando mergulhamos no fediverso, mais especificamente naquilo que diz respeito ao processo criativo dos desenvolvedores de software livre e de código aberto, vemos centenas de projetos maduros, com milhares de pessoas que os utilizam, e muitos outros projetos menores que derivam destes projetos maiores, buscando produzir modificações e adaptações que atendam a necessidades e interesses específicos de usuários e comunidades. É um processo colaborativo, direto ou indireto, que multiplica as ferramentas de resistência às plataformas das redes sociais privadas e aos softwares proprietários.

No entanto, assim como era preciso ter alguns conhecimentos básicos a respeito do manuseio de equipamentos radiofônicos para montar uma rádio livre, também é preciso desenvolver certo aprendizado para alcançar um conhecimento basilar para a instalação e manutenção dos aplicativos de código aberto envolvidos na construção de sites, blogs e redes sociais federadas e autogeridas, como é necessário para o uso do Mastodon, Pixelfed e Peertube, por exemplo.

Mas assim como as rádios livres buscavam criar circuitos de feedback entre ouvintes e equipes de transmissão, "seja por intervenções ao vivo no telefone, seja pela abertura das portas do "estúdio", seja pelas entrevistas ou realização de programas em cassetes pelos ouvintes", como nos lembra Guattari, é também de suma importância que estes circuitos existam e sejam aperfeiçoados nas propostas tanto de desenvolvimento de softwares livres, que buscam resistir à lógica centralizada e individualizante do capital por meio da proximidade entre desenvolvedores e co-desenvolvedores/usuários, como dentro das próprias aplicações, através do próprio modo de interação, navegação e gestão destes ambientes: eles são desenhados para que o usuário saia do papel de objeto, a ser manipulado seguindo a lógica do cliente, para que possa se implicar no processo de tomada de decisões (passando também ao papel de co-desenvolvedor) sobre a sua vida no espaço virtual?

Rádio Alice.

É evidente que assim como há um impacto na realidade concreta causado pela forma como interagimos nas plataformas privadas, também podem haver profundas mudanças advindas de outros modos de vida que venham a emergir nas redes sociais federadas. Este é um trabalho sempre instituinte, que parte da exploração, transposição e invenção de técnicas, modos de interação e de expressão: tudo está sempre em fase beta.

Outro aspecto fundamental se dá por uma visão ecossistêmica e descentralizada ausente na perspectiva imposta pelas redes sociais hegemônicas: cada uma delas busca, a seu modo, ser auto-suficiente dentro do nicho que se propõe a explorar (seja o de fotos, microblogging, mensagens instantâneas e vídeos rápidos ou longos). Mas o que a Radio Alice e o jornal A/Traverso nos ensinam, é que é preciso criar uma rede de meios de comunicação: encontros informais, jornais impressos, quadros de avisos, pinturas em murais, cartazes, panfletos, reuniões, atividades comunitárias, festas. Hoje, que outros meios poderiam se integrar a uma rede social hiper-local e comunitária que buscasse uma recomposição social e mental das pessoas de uma localidade? O movimento das rádios livres propôs que o meio radiofônico fosse apenas um dos elementos de um conjunto de outras maneiras de comunicar, conviver e expressar.

Diante disso, percebemos o potencial enorme dos projetos de aplicações que buscam tornar factível a expressão, a comunicação ou a relação entre diferentes linguagens por meio de diferentes gêneros de software, seja pela maneira de organizar a visualização das informações, pelos modos de estilizar a informação, de permitir a interação, de acionar a partipação individual em eventos coletivos, de possibilitar a comunicação entre diferentes protocolos, de permitir a classificação e avaliação das informações, enfim, as possibilidades são inúmeras e potencialmente transformadoras.

Mas o que isso significa em termos práticos? De imediato, o que está sendo afirmado é o seguinte: vamos continuar insistindo em nos adaptarmos às formas e maneiras de nos comunicarmos, de nos relacionarmos e de nos expressarmos desenhadas sob encomenda pelas big techs? É preciso estar ciente que esta escolha implica em jogar o jogo que foi criado por eles, sabendo inclusive que o nosso "conteúdo de resistência" é completamente neutralizado ao ser capturado pela lógica arquitetônica que regula as interações com algoritmos construídos para a manipulação de dados e produção de comportamentos.

Do outro lado, as rádios livres nos transmitem uma última lição: enquanto a arquitetura de comunicação das rádios tradicionais se baseava num certo padrão de fala, correto, adequado, reconhecido e especializado, neutralizando qualquer perspectiva de mudança social e subjetiva; na rádio livre os debates sérios eram interrompidos por intervenções contraditórias, humorísticas ou poéticas, o importante era justamente a produção de um espírito comunitário, que permitisse a expressão de um coletivo de vozes com todas as suas contradições. O importante era a construção de um espaço onde as vozes, em sua diferença, em seus interesses e desejos, pudessem se fazer ouvidas no processo de expressão.

Enquanto um espaço obriga a uma adaptação das forças existentes em cada pessoa a um determinado padrão que se busca fixar, o outro emerge da própria reinvenção contínua do espaço para que ele sirva às diferentes forças que se apresentam através das pessoas, seus interesses e necessidades.

Se levássemos estas lições em consideração e observássemos bem o nosso contexto, por onde seria possível começar?